Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Vizinhos denunciam ao Conselho Tutelar:
“Há uma situação de abuso sexual de uma criança e também a questão de maus tratos em relação à família”, destaca o conselheiro Hugo Mota.
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Contra a mãe, negligência: comida estragada, mau cheiro e sujeira em uma casa sem banheiro.“Eu arrumo. Mas é porque os meninos bagunçam. Eu fico meio preguiçosa, eu arrumo quando eu quero”, diz a mãe.
Contra o pai, a outra denúncia;
Conselheiro tutelar: Cadê o seu pai? Você não gosta dele?
Vítima: Não.
Conselheiro tutelar: O que foi que seu pai fez contigo?
Vítima: Estuprou.
O irmão mais velho confirma: “Foi só uma vez só”.
O boletim de ocorrência é feito. Mas a oportunidade da prova pode ter se perdido.
“Em relação ao abuso sexual, não foi feito exame porque ela relata que faz um mês que aconteceu isso. Então não há mais indícios em relação a isso”, afirma Hugo Mota, conselheiro.
As crianças são levadas a um abrigo. Mas a filha não aceita e foge. Finalmente a adolescente concorda. A mãe promete mudar. “É para o bem deles que vou organizar lá, dar uma organizadinha”.
Depois de um mês e meio no abrigo, todos voltam para casa. Mas foram poucas as mudanças. Novas denúncias aparecem, e o conselho encaminha o caso ao Ministério Público.
O inquérito sobre o abuso também não andou muito. Por que a investigação não avança? O que acontece com as denúncias que viram processos judiciais?
Em todo o Brasil, há um único levantamento realmente abrangente sobre o desfecho de casos.
Um juiz do Recife acaba de concluir o mais completo retrato que alguém já fez sobre crimes contra a criança em uma grande cidade brasileira. A pesquisa inédita, que o Fantástico mostra em primeira mão, traça, com precisão, o perfil tanto da criança agredida quanto do agressor.
O juiz Luiz Rocha tinha 20 anos de profissão. Mas quando chegou à Vara da Infância, ficou chocado. “São casos absurdos, são casos violentos, são casos degradantes”.
Quando soube que não havia nenhuma estatística, o choque foi maior ainda.
“A sociedade não quer ver esse problema. Ela não quer sequer olhar de lado. Que dirá olhar pra trás”, diz Luiz Rocha, juiz.
Mas o juiz resolveu olhar. Em oito meses de trabalho, esmiuçou os 427 processos de crimes contra a criança em Recife nos últimos 26 anos. Todos julgados e com sentença definida: 42% são de abuso sexual; 58%, violência física, maus tratos e lesão corporal; em 91% dos casos o agressor era alguém próximo, em quem a criança confiava.
“Eles são pessoas conhecidas da criança, eles têm acesso na vida escolar, na vida familiar, na vizinhança”, afirma o juiz.
Talvez por isso o agressor, em 95% das denúncias, só usou o convencimento como arma. Faca e revólver em apenas 4% dos casos. O local do crime, em 35% das vezes, foi a casa do agressor. Em 29%, a casa da criança. Por outro lado, quem mais denuncia não é a polícia nem o conselho tutelar. É algum parente que não concorda com a agressão: isso acontece em 85% das vezes.
“Às vezes não é necessariamente o núcleo principal constituído por pai e por mãe, é um tio que está diante de uma situação insuportável, são os avós que estão diante de uma situação insuportável”, relata o juiz.
Nos casos de abuso sexual, a pesquisa mostra que o agressor é predominantemente homem, com emprego definido, alfabetizado, tem entre 17 e 25 anos, e não tem antecedentes criminais em 89% dos casos.
A vítima tem, em média, 13 anos, estuda, e é do sexo feminino em 98% dos casos. Um dado preocupante: só há prisão em flagrante em 13% das denúncias. E dos que são presos, só 9% continuam na prisão ao final do processo. Para o juiz, é o resultado de investigações malfeitas. Em vez de provas, o que chega ao processo é uma segunda violência cometida contra a criança.
“A revitimização, a reouvida, a tomada de depoimentos inúmeras vezes da criança causando maiores prejuízos ainda a essa criança. Era importante que já na fase policial do inquérito, nós tivéssemos uma única ouvida da criança, onde estivesse presente delegado, promotor e juiz. Bastava uma ouvida”, diz.
No interior de Sergipe, a prova de que o estado pode zelar pela infância. O juiz Manoel da Costa Neto aparece sem avisar.
“As visitas são sempre feitas de surpresa para evitar que as coisas sejam maquiadas e encontrar tudo perfeito”, afirma Manoel da Costa Neto.
Ele acompanha a vida de cerca de 250 crianças e adolescentes nos abrigos da cidade de São Cristóvão. Um olhar minucioso e fiscalizador. Mais do que fazer o abrigo funcionar, o juiz quer devolver os abrigados à família.
“Toda casa de acolhimento, para nós, é uma casa de passagem. Tem que ser uma casa de passagem para que a gente possa sempre buscar soluções em cada caso”, observa o juiz.
Ainda que a solução possível seja encontrar uma outra família. O caminho da adoção, que ele conhece muito bem.
“Eu não conheço só de livros nem de processo, eu conheço da prática, que eu tenho um filho de 24 anos que eu adotei com dois dias de nascido”, revela.
O juiz decide o caso de gêmeas, órfãs de mãe, pai traficante. A nova candidata a mãe já tem 51 filhos adotivos. As gêmeas se juntam aos muitos irmãos da nova casa. Ganharam o que toda criança tem direito: a chance de algum futuro.
“Eu não estou nem querendo mais que eles sejam doutores, não estou. Sendo homens e mulheres de bem, para mim, está bom demais”, diz a aposentada Etani Souza Fonte.
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